Arbitragem é uma forma heterocompositiva de solução de conflitos, em que as partes, por vontade própria, elegem um terceiro para decidir um conflito relativo a direitos patrimoniais disponíveis, sem a intervenção estatal. Portanto, é um meio privado de resolução de disputas, que tem, inclusive, natureza jurisdicional.
Mas o que significa ter natureza jurisdicional? Significa que a sentença arbitral tem os mesmos efeitos de uma decisão estatal (art. 31 da Lei de Arbitragem) e que também é considerada título executivo judicial (art. 515, VII, NCPC), afastando o mito do Estado onipotente e centralizador, que alimenta a ideia de que apenas seus juízes podem administrar a justiça.
O próprio STJ reconhece em diversos precedentes a natureza jurisdicional da arbitragem (CC 111.230-DF e CC 146.939-PA).
Ademais, cumpre indicar que o STF já declarou incidentalmente a constitucionalidade da Lei de Arbitragem, por não vislumbrar ofensa à inafastabilidade da jurisdição (SE 5206 AgR).
Recentemente, o STJ ao julgar o Conflito Positivo de Competência n.º 139.519-RJ, afastou a competência do TRF2 para apreciar litígio envolvendo a ANP – órgão da Administração Direta – e a Petrobrás, com posterior intervenção do Estado do Espírito Santo sobre alegada alteração na distribuição de royalties. Trata-se do primeiro julgado acerca da aplicação da arbitragem no âmbito da administração pública.
O STJ considerou prematura a abertura da instância estatal, o que frustraria o propósito maior do instituto da arbitragem, e declarou competente o Tribunal Arbitral da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI, com sede em Nova York/EUA.
A controvérsia girou em torno da competência para decidir sobre a existência, validade e eficácia de cláusula compromissória inserida em contrato de concessão para exploração de campos de petróleo firmado entre a ANP e a Petrobrás.
No caso concreto, a ANP alterou unilateralmente o contrato, modificando a área concedida, de forma a aumentar a participação a ser paga pela Petrobrás à União Federal. Com base na cláusula arbitral prevista no contrato de concessão, a empresa pública deflagrou o procedimento arbitral junto à Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI, não sem antes ajuizar ação anulatória na contra a União com a finalidade de suspender os novos repasses. A liminar, concedida em 1ª instância, foi cassada pelo TRF2, o que levou a estatal a suscitar conflito de competência no STJ, pois ambas as instâncias se afirmavam competentes.
O que faz desta decisão do STJ tão relevante foi a leitura da regra kompetenz-kompetenz sob a ótica da precedência da utilização de meios extrajudiciais de solução de conflitos.
Segundo Luiz Antônio Scavone Júnior1, a competência-competência é elemento basilar da arbitragem como meio de solução de controvérsias, indicando que qualquer alegação de nulidade de contrato ou da cláusula arbitral, diante de sua existência e seguindo o espírito da lei, deve ser dirimida pela arbitragem e não pelo Poder Judiciário.
Trata-se, portanto, de ‘cláusula de barreira’, verdadeira preferência ou prioridade no julgamento, em que, num contexto de concorrência jurisdicional, a lei prevê o momento e forma para a atuação do Poder Judiciário, o que se dá apenas depois da sentença. A ideia é prestigiar a arbitragem, sob pena de, em não o fazendo, esvaziar o instituto.
E antes que se venha questionar a inaplicabilidade do disposto na cabeça do art. 1º da Lei de Arbitragem2 aos conflitos envolvendo a Administração Direta, por tutelar ‘direitos indisponíveis’, o STJ, conforme se colhe do voto da Ministra Regina Helena Costa, que capitaneou o voto divergente, entendeu que é preciso diferenciar o interesse público, que, de fato, é indisponível, do direito patrimonial, que é sempre disponível, muito embora se trate de Administração Pública.
A Ministra Regina Helena Costa foi categórica: “Sempre que a administração contrata, há disponibilidade do direito patrimonial, podendo, desse modo, ser objeto de cláusula arbitral, sem que isso importe em disponibilidade do interesse público”.
Não podemos discordar dessa afirmação, na medida em que a disponibilidade não implica renúncia ao próprio direito, mas dispensa da proteção judicial.
É interessante mencionar, por outro lado, que o Estado do Espírito Santo não conseguiu emplacar sua tese de que, por ser parte alheia ao contrato, não poderia ser afetado por ele.
De fato, soa um pouco estranho que um terceiro seja atingido pela cláusula arbitral (o que poderia, em tese, significar até ofensa ao art. 4º3), mas o STJ assentou que a convenção de arbitragem admite a intervenção de terceiros não signatários, sem falar que a instauração do procedimento não impossibilita o acesso à Justiça pelo Estado-membro, o qual poderá questionar – dentro do procedimento arbitral – a alegada alteração na distribuição de royalties.
É preciso dizer que o NCPC alterou significativamente a sistemática processual, exortando as pessoas à solução extrajudicial. Na realidade, passou a ser dever do Estado, sempre que possível promover a solução consensual dos conflitos, conforme dicção do art. 3º, §2º, NCPC4.
Sintonizado com isso, a edição da Lei n.º 13.140/2015 (Marco da Mediação), posterior ao NCPC, que em seu art. 32, faculta às entidades que compõem a Federação a criação de câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, a serem instituídas no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, para dirimirem conflitos entre órgãos e entidades da Administração Pública e, por meio de composição, promover a resolução de conflitos entre particulares e pessoa jurídica de direito público.
Não custa lembrar também que a Lei n.º 8.987/95 (Lei Geral das Concessões e Permissões), devido a alteração legislativa de 2005 que introduziu o art. 23-A, já trazia a possibilidade de utilização de mecanismos de arbitragem nos contratos de concessão e permissão.
A própria Lei n.º 9.307/96 (Lei de Arbitragem), com alteração legislativa de 2015, que incluiu os §§ 1º e 2º ao art. 1º, passou a prever expressamente a possibilidade de a Administração Pública utilizar a arbitragem.
Portanto, como sumarizou a Ministra Regina Helena Costa em seu voto, há verdadeira “precedência da utilização dos métodos alternativos à atuação jurisdicional do Estado para solução de controvérsias. E, se assim é, à Administração Pública não pode ser negada tal possibilidade.”
Dessa forma, com essa importante decisão, o STJ prestigia a solução extrajudicial de conflitos, notadamente a arbitragem, evidenciando a ascensão do interesse por meios alternativos de solução de conflitos.
E não poderia ser diferente. Com quase 110 milhões de processos judiciais em tramitação em 20165, é bem-vinda uma orientação da Corte responsável pela interpretação do direito infraconstitucional que privilegia formas alternativas de solução de conflitos.
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1 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antônio. Manual de Arbitragem. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 100/101.
2 Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
3 Art. 4º A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato. […]
4 Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
[…]
§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
[…]
5 https://www.conjur.com.br/2017-set-04/110-milhoes-processos-passaram-judiciario-2016.
Por Daniel Xavier Torres, advogado e procurador do município de Goiânia, pós-graduado em Direito Corporativo pelo Ibmec-Rio
Fonte: Jota – 27/12/2017 – 08:43
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