Na primeira parte deste artigo, apresentei tanto os argumentos favoráveis, quanto aqueles que se apresentam contrários à adoção da arbitragem em matéria tributária no Brasil, a exemplo do que fez Portugal e outros países.
Na ocasião, concluiu-se não haver óbices constitucionais ou legais para a implantação desse mecanismo que se insere no conjunto daqueles que podem, dentro do espírito do novo CPC, reduzir e/ou prevenir a litigiosidade perante o Poder Judiciário.
Todavia, ao final, novas dúvidas foram lançadas para a reflexão: a) haveria algum interesse do Estado em submeter as demandas tributárias nas quais figura como réu a um sistema paralelo de julgamento? b) seria mesmo desejável que as decisões em matéria tributária sejam estritamente técnicas? c) haveria alguma diferença entre o sistema de referência jurídico-tributário dos juízes e tribunais arbitrais e dos juízes e tribunais estatais?
Tentar identificar chaves de resposta para essas perguntas, é o objetivo desta segunda parte.
O que fazem os juízes?
É comum a ideia, presente no senso comum do jurista, no sentido de que, ao exercerem suas funções, o que os juízes fazem é “aplicar a lei com justiça”. Também está no senso comum do jurista a ideia de que a lei, por sua vez, é encontrada em um vasto conjunto de normas a que se dá o nome de ordenamento jurídico, que seria organizado de forma hierárquica, com estrutura piramidal e no qual as normas inferiores retirariam seu fundamento de validade das normas superiores. Esta imagem representa a realidade para boa parte dos operadores jurídicos.
Todavia, o que os juízes e tribunais de fato fazem, de forma consciente ou inconsciente, não é “aplicar a lei com justiça”, mas criar leis novas em cuja composição entram suas concepções morais, além de suas crenças, valores, opiniões políticas e, muitas vezes, até afetos. Importante frisar que a justiça é conceito ético, apenas passível de consensos, porém nunca de definições.
Trabalhar com essa ideia do senso-comum do jurista, ou seja, com esse universo ou ‘sistema de referência’ leva à ilusão de que determinado ordenamento jurídico seja definível e com quantidade conhecida de normas, por mais abundantes que elas sejam. Seria como se as normas postas pelo legislador tivessem vida própria e saltassem dos códigos para a vida social, ou seja, para dentro dos contratos e negócios jurídicos em geral, bem como para dentro dos atos administrativos e dos processos e decisões judiciais, operando seus efeitos.
Os juízes seriam, assim, apenas os porta-vozes das leis, já que estas, como dito, seriam autossuficientes, o que se refletiria no fato de serem dotadas de vontade própria, teleologia própria, lógica própria, história própria e um sentido próprio, certo, correto e, enfim, único. Juiz bom, portanto, seria aquele capaz de descobri-lo. A repetição do adjetivo próprio/própria, aqui, é proposital, para indicar que os métodos tradicionais de hermenêutica (teleológico, gramatical, lógico, sistemático etc.), ainda largamente utilizados pela doutrina e jurisprudência brasileira, no limite, não fazem sentido[i], porque são capazes apenas de revelar a vontade do próprio julgador.
Ainda no século XX, a mente poderosa de Hans Kelsen demonstrou que as normas postas pelo legislador não se confundem com as normas criadas, a partir delas, pelo julgador, de sorte que o ordenamento jurídico não seria apresentado de forma tão exata, já que formado por um número infinito e desconhecido de normas jurídicas[ii]: todas as normas postas pelo Estado, através do legislador, aí incluída a Constituição, mais todas as normas passadas e presentes postas pelos juízes e tribunais. Em uma palavra: o ordenamento jurídico agora seria incomensurável, especialmente porque, como Kelsen concluiu, a vontade do julgador seria elemento decisivo na construção das normas postas pelo Poder Judiciário.
Em Kelsen, a razão para essa diferença entre a norma do legislador e a norma do julgador reside em uma constatação irrefutável: a linguagem humana é demasiado limitada. Em sendo assim, (i) por mais que o legislador apresente normas detalhadas, elas nunca serão suficientes para abarcar os fatos da vida e, portanto, as lides, em toda a sua extensão, variação e complexidade. De outro lado, pela mesma razão da citada limitação, a linguagem humana, (ii) por mais culta que seja, está quase sempre cheia de termos vagos, ambíguos e [porosos], os quais, quando lidos e contextualizados por julgadores diversos, de épocas diversas e diante de casos diversos, muito frequentemente, dão origem a normas jurídicas variadas, diferentes entre si, e, por vezes, muito distantes daquilo que imaginou o legislador, o primeiro a positiva-la. Dessa maneira, o texto da lei é capaz de fornecer ao juiz, na maior parte dos casos, apenas uma moldura, dentro da qual ele decide com boa dose de voluntarismo. Assim, entre o texto da norma e a norma jurídica o que existe é um processo interpretativo de construção do sentido da norma pelo juiz.
Kelsen chega a dizer que “a jurisprudência tradicional crê, no entanto, ser lícito esperar da interpretação não só a determinação da moldura para o ato jurídico a pôr, mas ainda o preenchimento de uma outra e mais ampla função”, qual seja, “a interpretação deveria desenvolver um método que tornasse possível preencher ajustadamente a moldura prefixada[iii]”. Ele, no entanto, diz que essa tarefa é impossível, pois a interpretação não é, como se crê, um ato puramente intelectual de clarificação e compreensão, levado a termo pelo juiz a partir do uso de sua razão e raciocínio, mas, ao contrário, um ato que combina atividade intelectual com o exercício da vontade.
O avanço dos estudos da lógica da linguagem, também conhecida como semiótica, prova essa tese de forma irretorquível, pois demonstra que suporte físico (texto da lei), significante (padrão associado a determinado signo) e significado (definição de sentido pelo intérprete) compõem um complexo percurso gerador de sentido[iv] que, de tão sujeito a diversas variáveis, como crenças, valores, opiniões e afetos, requer extremo cuidado para ser uniformizado, especialmente diante da nossa tradição voluntarista e das exigências constante dos artigos 926 e 927 do CPC.
Por outro lado, o avanço dos estudos em Filosofia do Direito, Hermenêutica e Teorias da Argumentação, sem negar essa realidade difusa quanto ao conteúdo dos ordenamentos jurídicos, desenvolveram formas de racionalização do direito com o propósito de limitar e objetivar essa atividade, digamos, legislativa do Poder Judiciário, negando veementemente o voluntarismo judicial[v] tido por Kelsen como incontornável, tudo em nome de valores políticos, relacionados à constituição do Estado de Direito, como por exemplo, a legitimidade democrática, a legalidade e, sobretudo, a estabilidade, a previsibilidade e a coerência das regras do jogo, corolários de um dos princípios mais caros aos imperativos da “lei e da ordem”: a segurança jurídica.
Dessa maneira, na prática, o que os juízes fazem é dar sentido aos termos, períodos e frases dos textos legais, organizá-los na forma lógico-deôntica, ou seja, se “H”, então “C” (H → C), contextualizá-los com outras normas do vasto ordenamento jurídico e apresentar a norma jurídica a reger o caso concreto[vi].
A complexidade reside em todas essas etapas. A primeira fase do processo somente pode ocorrer se o juiz for capaz de dar sentido aos termos do texto legal. Em matéria tributária, por exemplo, se sabe o que é um insumo, se compreende as etapas de produção de determinada indústria, se consegue perceber quando um insumo é consumido, ou não, no processo industrial, se entende como se calcula crédito e débito no processo de não-cumulatividade contábil, com substituições tributárias para frente ou para trás etc.
Em seguida, tendo compreendido o texto e lhe atribuído sentido, deve o juiz converter a linguagem da lei, que, frequentemente aparece na forma descritiva, na forma deôntica ou prescritiva, ou seja, tem que estruturar a linguagem em forma de norma: se H, então C (H → C). No passo seguinte, o juiz tem que ser capaz de contextualizar a norma previamente encontrada dentro do conjunto das diversas outras normas possivelmente aplicáveis, como princípios constitucionais, outras normas tributárias, legais e infralegais, além de precedentes judiciais. Aqui, importante lembrar que essas outras normas do contexto, também têm que passar pelo mesmo processo de construção acima descrito.
O que fazem os árbitros?
Os árbitros e tribunais arbitrais atuam da mesma forma que os juízes e tribunais do Estado, uma vez que sua missão não é mediar uma transação ou um acordo, embora este seja quase sempre desejado, mas julgar a demanda apresentada, a partir da construção de uma norma jurídica para o caso concreto. Todavia, o sistema de arbitragem promete entregar a prestação jurisdicional de forma célere, o que é um argumento tentador ante a realidade estatal brasileira, mas, sobretudo, e esse parece ser o seu grande diferencial, há a promessa de tomada de decisões com valorização dos critérios técnicos, razão pela qual seriam elas muito mais precisas e, sob esse ponto de vista ou critério de justiça, justas[vii].
Sim, no plano dos sistemas de referência onde o critério técnico tem primazia, a justiça se orienta para o pragmatismo, ou seja, valoriza o resultado alcançado com base no que funciona e, do ponto de vista do direito material, o que funciona é o que se apresenta tecnicamente perfeito.
Em outras palavras, o sistema de arbitragem traz para o universo dos juízes e tribunais privados um aspecto muito presente nas profissões liberais, mas que, por força do desenho institucional do Estado, é negado aos juízes e tribunais oficiais: a marca da excelência em razão da capacidade técnica, não apenas do cargo exercido. Ou seja: para curar a doença mais grave, o melhor médico, para julgar as causas mais complexas em determinado ramo do direito, não só o melhor juiz do ponto de vista dos seus atributos gerais (culto, ponderado, imparcial), mas também aquele mais versado no tema: tributário, previdenciário, criminal, ambiental, contratos, família, sucessões, enfim.
No modelo atual, contudo, parte-se do pressuposto de que os juízes nomeados pelo Estado possuem a excelência para conduzir e julgar todo e qualquer caso. Essa assertiva está bem distante da realidade. Nossos magistrados, em regra, são como clínicos gerais, apresentando boa técnica para lidar com o direito processual, porém, quando se trata do direito material, possuem especialidade em algum ou alguns ramos apenas. A especialização do magistrado em certas áreas ainda não é valorizada como deveria no âmbito dos tribunais brasileiros, genericamente falando.
Em tais termos, essa promessa da arbitragem, ao lado da celeridade, é extremamente relevante em defesa de sua aplicação também no âmbito tributário. Aliás, especialmente no Direito Tributário, ramo extremamente complexo e que requer, em grande parte dos casos, experiência e conhecimento de sua intrincada legislação, tradição, doutrina, jurisprudência. Isso sem mencionar a necessidade também de conhecimentos na área contábil, econômica e empresarial, os quais fazem muita diferença para a construção da decisão com o desejável padrão técnico de excelência, mesmo nos casos em que a realização de perícia não seja necessária.
Questões tributárias devem ser submetidas a árbitros?
Depois de tudo quanto dito acima, conclui-se que as demandas tributárias, desde que tomadas as cautelas quanto às restrições de forma e conteúdo, nos termos acima postos, podem, sim, ser submetidas a julgamento por juízes e tribunais privados.
Todavia, a questão mais tormentosa não essa, mas aquela que indaga se elas devem ser submetidas a juízes e tribunais arbitrais no Brasil. Essa questão, a nosso ver, ainda não está suficientemente amadurecida, seja porque há ainda a necessidade de se refletir melhor sobre se as decisões tributárias eminentemente técnicas são adequadas, ou não, para o desenvolvimento do projeto social, financeiro e econômico previsto na Constituição, seja porque vislumbra-se acesso ao sistema arbitral apenas por parte de grandes contribuintes, circunstância que, a princípio, não contribuiria para a redução do tamanho da estrutura administrativa do Estado, nem para a promoção da cidadania. Esse último ponto, portanto, conduz à parcial conclusão de que faleceria interesse estatal na implementação desse interessante e útil método de resolução de conflitos. Continuemos a pensá-lo, pois.

i ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005.
ii KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
iii “Só que, de um ponto de vista orientado para o direito positivo, não há qualquer critério com base no qual uma das possibilidades inscritas na moldura do direito a aplicar possa ser preferida à outra. Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de direito positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como “correta” – desde que, naturalmente, se trate de várias significações possíveis: possíveis no confronto de todas as outras normas da lei ou da ordem jurídica.” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p.391).
iv CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. Noeses: São Paulo, 2013.
v Nesse sentido, mas com diferentes concepções de norma, ordenamento jurídico e soluções para o voluntarismo, conferir: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. Noeses: São Paulo, 2013. ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2005. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2011. ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. Rio de Janeiro: Forense, 2014. MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa Barcelos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2012.
vi CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. Noeses: São Paulo, 2013.
vii Sobre
Por Bianor Arruda Bezerra Neto, juiz federal na 5ª Região, doutor pela PUC/SP e professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 13 de novembro de 2017, 6h04
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