I. INTRODUÇÃO

Os Dispute Boards (DB) ou Comitês de Resolução de Disputas (CRD) são instrumentos contratuais para prevenção e solução consensual de conflitos. Em brevíssima síntese, os dispute boards constituem-se num corpo de profissionais independentes e com conhecimento técnico sobre o objeto contratual, com o objetivo de solucionar de maneira célere e técnica os litígios que porventura ocorram1.

Podem funcionar de forma ad hoc – sendo formado quando da ocorrência de um conflito até o exaurimento dos procedimentos para a sua resolução – ou permanente, desde o início do contrato, acompanhando a sua execução, até a extinção da avença, independentemente da existência de conflitos.

 


1 Segundo parâmetros constantes da justificativa do Projeto de Lei nº 9883/2018O Projeto de Lei nº 9883/2018, da Câmara dos Deputados, dispõe sobre o uso dos Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards) em contratos administrativos. Atualmente está aguardando Parecer do Relator na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP). Está disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2170449>. Acesso em 08 abr. 2020.


 

Os dispute boards surgiram na década de 1970 nos Estados Unidos especialmente para discutir as demandas surgidas nos contratos de grandes projetos de infraestrutura, de forma mais célere e menos custosa. Cyril Chern e Michael Kamprath citam a Boundary Dam, em Washington, na década de 1960, como o embrião do dispute review board2. No entanto, o caso mais emblemático que marca o surgimento de um dispute board, no entanto, foi a obra do túnel de Eisenhower, no Colorado, quando se confirmou a eficácia da instituição do dispute board para acompanhar a execução do projeto de construção3.

No Brasil vários contratos já previram o dispute board, apesar da escassez de normas legais no ordenamento jurídico brasileiro. Inicialmente, a previsão do instituto se deu em função da celebração de contratos com recursos de instituições internacionais como o Banco Mundial, cujas normas internas assim determinavam4. Mas paulatinamente o ordenamento jurídico brasileiro está incorporando a regulamentação do uso dos comitês de resolução de disputa e o vetor tem sido os contratos firmados pela Administração Pública.

Apesar de uma maior visibilidade em contratos de construção, podemos observar cada vez mais a sua incidência em contratos de outras naturezas, como acordos de acionistas, recuperação judicial e contratos internacionais. No Brasil a previsão destes comitês já é prática nos contratos de parceria5-6. Porém, seu uso tem sido largamente estendido para os demais contratos celebrados pela Administração Pública.


2 SANTOS, Carolina Mallmann Tallamini dos. Dispute boards: maximização da eficiência no procedimento pré-arbitral em contratos de construção. In: Revista de Arbitragem e Mediação | vol. 56/2018 | p. 243 – 261 | Jan – Mar / 2018 DTR\2018\10282. 3 Dados da Dispute Resolution Board Foundation apontam que 99% dos conflitos que usam dispute boards são resolvidos em menos de 90 dias e que 98% das disputas encerram-se com os dispute boards. Disponível em http://ec2-34-201-249-83.compute-1.amazonaws.com/fgv-projetosdebate-dispute-boards-como-estrategia-para-prevencao-de-conflitos/ 4 Anote-se que o art. 42, § 5º, da Lei nº 8.666/93 dispõe que “Para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior.” 5 Nos termos da Lei nº 13.334/2016, consideram-se contratos de parceria a concessão comum, a concessão patrocinada, a concessão administrativa, a concessão regida por legislação setorial, a permissão de serviço público, o arrendamento de bem público, a concessão de direito real e os outros negócios público-privados que, em função de seu caráter estratégico e de sua complexidade, especificidade, volume de investimentos, longo prazo, riscos ou incertezas envolvidos, adotem estrutura jurídica semelhante. (art. 1º, § 2º) 6 No Estado de Santa Catarina, na Região da AMFRI, como adiante será citado, há regulamentação do funcionamento do Comitê de Resolução de Disputas, para os contratos de concessão e parcerias público-privadas: Lei municipal nº 3.023/2018 (Penha);


 

O objetivo deste ensaio é apresentar as normas em discussão e já vigentes no Brasil, bem como os parâmetros gerais da previsão dos dispute boards em contratos com a Administração Pública

 

II. REGULAMENTAÇÃO E INSTALAÇÃO DOS DB/CRD

A. LEGISLAÇÃO E PROJETOS DE LEI

A utilização de mecanismos privados para solução de conflitos no âmbito da Administração Pública está prevista na legislação pátria. A Lei nº 9.307/96 – Lei da Arbitragem prevê:

Art. 1º. (…) § 1º A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. § 2º A autoridade ou o órgão competente da administração pública direta para a celebração de convenção de arbitragem é a mesma para a realização de acordos ou transações. Art. 2º (…) § 3º A arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade.

A Lei nº 13.140/15, por sua vez, estabelece a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da Administração Pública.

Nos contratos de concessão, a Lei nº 8.8987/95 elenca como cláusula essencial aquela que preveja modo amigável de solução das divergências contratuais (art. 23, XV) e de forma mais expressa:

Art. 23-A. O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.

A lei de parcerias público-privadas também indica que o instrumento convocatório conterá minuta do contrato podendo prever o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato (art. 11, III, da Lei nº 11.079/04)


9.017/2018 (Ilhota); Lei municipal nº 3.775/2018 (Itapema); Lei municipal nº 2.634/2018 (Porto Belo); Lei municipal nº 7107/2019 (Itajaí). Outros municípios de Santa Catarina, ainda que sem regulamentar especificamente o funcionamento, também preveem o seu uso na contratação de parcerias público-privadas.


 

Especificamente no que diz respeito aos dispute boards ou comitês de resolução de disputas, no município de São Paulo, a Lei nº 16.873, de 22 de fevereiro de 2018, de forma pioneira reconhece e regulamenta a instalação de Comitês de Prevenção e Solução de Disputas em contratos administrativos continuados celebrados pela Prefeitura de São Paulo. Tais comitês tanto podem se reportar às regras de alguma instituição especializada (como câmaras de mediação e arbitragem) como podem ter suas regras regulamentadas por anexo contratual.

No âmbito federal há projetos de lei em andamento.

O PL 206/2018, do Senado Federal, regulamenta a instalação de Comitês de Prevenção e Solução de Disputas em contratos administrativos continuados celebrados pela União. O PL 9883/2018, da Câmara dos Deputados, dispõe sobre o uso dos Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards) em contratos administrativos.

Há, ainda, previsão específica no PL nº 1.292/95 (Nova Lei de Licitações) que prevê a utilização dos comitês de resolução de disputas nos contratos celebrados pela Administração Pública:

Art. 149. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente, a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.

Ainda nessa seara, o Projeto de Lei 7063/17, que estabelece a Lei Geral de Concessões (LGC), indica:

Art. 173. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, tais como a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem. § 1º Os contratos poderão ser aditados para permitirem a adoção dos meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias. § 2º Aplica-se o disposto no § 1º inclusive na hipótese de já ter sido proposta ação judicial por qualquer das partes.

Na esfera municipal, para além do município de São Paulo (que foi pioneiro ao regulamentar o tema com a Lei nº 16.873/2018), os municípios catarinenses de Ilhota (Lei nº 1917/2018), Itapema (Lei nº 3775/2018), Penha (Lei nº 3023/2018), Porto Belo (Lei nº 2634/2018) e Itajaí (Lei nº 7107/2019) disciplinam o uso dos comitês nos contratos de concessão e parcerias público-privadas.

De acordo com as leis municipais citadas, os comitês têm por objetivo dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis e devem estar previstos no edital e no contrato e entrará em funcionamento quando estiver regularmente constituído por meio da assinatura do respectivo Termo de Compromisso pelas partes e membros, o que deverá ocorrer em até 30 (trinta) dias contados da celebração do contrato.

No que tange ao pagamento dos honorários dos membros do Comitê, prevê a legislação dos municípios citados que os valores respectivos devem constar do orçamento da contratação e que caberá ao contratado privado o pagamento da integralidade dos custos atinentes à instalação e manutenção, enquanto competirá ao órgão contratante reembolsá-lo da metade de tais custos, após aprovação das medições previstas no contrato.

A legislação municipal ainda prevê que o Comitê será composto por três pessoas capazes e de confiança das partes, indicados por meio de consenso entre as partes contratantes, e deverão atuar com imparcialidade, independência, competência e diligência. Já no PLS nº 206/2018 a proposta de formação do Comitê de três membros é que a escolha de um seja feita pelo Poder Público, do segundo pelo particular contratado e o terceiro seja escolhido em conjunto pelos outros dois membros e este seja o presidente do Comitê.

 

B. INSTITUIÇÃO

Como dito no início, o comitê de resolução de disputas pode ser criado concomitantemente ao início do contrato e acompanhar de forma permanente a execução contratual, mas também pode ser criado quando do surgimento de uma demanda (ad hoc).

Quando se fala em contrato celebrado pela Administração Pública, a rigor, os editais de licitação (no anexo correspondente à minuta de contrato) já devem prever suas cláusulas de dispute board.

Todavia, mediante alteração bilateral do contrato, por se tratar de um método reconhecido pelo direito brasileiro, não se verifica óbice de inserir regramento a respeito da inclusão deste mecanismo de solução de conflitos, mediante termo aditivo ao contrato. Aliás, é importante rememorar que o Projeto de Lei 7063/17, que estabelece a Lei Geral de Concessões (LGC), indica no § 1º do art. 173 que “Os contratos poderão ser aditados para permitirem a adoção dos meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias”.

No entanto, a despeito da previsão legal específica, as partes de comum acordo podem alterar o contrato para inserir expressamente, não apenas a possibilidade de solucionar controvérsias por meio de dispute boards, mas especialmente para regulamentar este mecanismo.

É salutar que o termo aditivo ao contrato – tal e qual a minuta de contrato, em caso de edital de licitação – defina se o comitê será permanente ou ad hoc; se será regulado por Câmara de Mediação e Arbitragem ou se será estabelecimento regulamento no contrato; como se dará o custeio das despesas do comitê e etc.

 

C. REGULAMENTAÇÃO

O comitê de resolução de disputas pode ser gerido por uma Câmara de Mediação e Arbitragem ou pelas regras estabelecidas no contrato.

Se a Administração Pública ou as partes em conjunto optarem por uma Câmara de Mediação e Arbitragem, é preciso indicar (ou incluir) no contrato cláusula que preveja a resolução de controvérsias pelo dispute board e indique a Câmara respectiva. Nessa hipótese, haverá a adoção do regulamento da Câmara para a instituição e processamento do dispute board, bastando prever no edital/contrato a criação do dispute board ad hoc ou permanente.

Por outro lado, é possível que o comitê seja regulamentado pelas partes, em cláusula e/ou anexo contratual (incluído à época da licitação ou mediante termo aditivo), que estabeleça as regras de instituição e funcionamento do comitê. Nessa hipótese toda a regulamentação deverá partir da legislação (se houver) e das regras estabelecidas no contrato, quanto à formação, procedimentos, honorários dos membros e eventuais taxas, vinculação e execução das decisões.

 

D. VINCULAÇÃO DE SUAS DECISÕES

As decisões do comitê de resolução de disputas podem ser vinculantes ou não vinculantes ou, ainda, apresentar ambos os efeitos. São os chamados Dispute Review Board (comitê por revisão), Dispute Adjudication Board (comitê por adjudicação) e Combined Dispute Board (comitê híbrido).

No Dispute Review Board, as decisões conformam opiniões ou orientações e têm caráter de mera recomendação, podendo ser espontaneamente cumpridas pelas partes. Se uma das partes não concordar com a decisão, pode objetá-la, apresentando suas razões de discordância, impedindo a produção de efeitos. No silêncio das partes, decorrido prazo previamente estabelecido, assumem efeito vinculante e obrigatório.

No Dispute Adjudication Board, a decisão é desde o início vinculante para ambas as partes, sem prejuízo ao direito de impugnação. No entanto, a decisão produz efeitos até que a controvérsia seja solucionada, obstando a paralisação do contrato.

No Combined Dispute Board, para que a decisão seja vinculante uma das partes deve requerer o caráter vinculante e a outra deve anuir ou silenciar, ou, ainda, o contrato/regulamento poderá prever os casos em que a decisão será vinculante.

 

III.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os dispute boards ou comitês de resolução de disputas apresentam-se como solução extrajudicial e técnica para a solução de conflitos nos contratos celebrados com a Administração Pública.

Por isso, é recomendável que os editais de licitação (no anexo referente à minuta de contrato) prevejam desde logo essa possibilidade, seja no formato ad hoc ou permanente e, naturalmente, incluam no orçamento da contratação os custos da instalação e funcionamento do comitê.

A falta de previsão dos comitês no edital de licitação, no entanto, não constitui óbice à sua inclusão por meio de alteração contratual, mediante acordo entre as partes. Esse mecanismo privado de solução de controvérsias constitui importante ferramenta para amparar as decisões dos gestores públicos, evitar a paralisação de contratos e evitar a judicialização dos contratos públicos.

 

 

Autora: Érica Miranda dos Santos Requi

Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – UFPR (2018). Especialista em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar (2012). Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2010). Consultora jurídica em Concessões e Parcerias Público-Privadas na Associação dos Municípios da Região da Foz do Rio Itajaí. Assessora Jurídica do Consórcio Intermunicipal Multifinalitário da Região da AMFRI. Sócia fundadora da MSRequi Consultoria Jurídica. Mediadora e Árbitra da Câmara de Conciliação de Santa Catarina e da Câmara de Mediação e Arbitragem de Santa Catarina – CAMESC. Vice-Presidente da Comissão de Parcerias Público-Privadas da OAB de Santa Catarina. Membro da Comissão de Dispute Board da OAB de Santa Catarina. Membro da Comissão de Licitação da Subseção da OAB de Itajaí. Professora do Grupo Negócios Públicos.


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