As transformações pelas quais passa o mercado de trabalho, especialmente em função do desenvolvimento tecnológico, são multifacetadas. Enquanto a inteligência artificial ameaça eliminar postos de trabalho, a era do compartilhamento revoluciona o modo de pensar, deslocando a ênfase do ter para o usar. Netflix, Spotify, AirBnb e Uber são apenas alguns exemplos de potências mundiais cujos modelos de negócio inovadores exigem um novo olhar sobre as tradicionais relações não só entre fornecedor e consumidor, como também entre empregador e empregado.
A legislação trabalhista deve observar tais transformações e ser permeável a elas, conferindo ao intérprete, seja ele advogado, juiz, autoridades administrativas, empregados ou empregadores, o instrumental adequado à resolução dos conflitos que são inerentes às relações de trabalho.
O Judiciário trabalhista, por sua vez, precisa acompanhar essas transformações, capacitando-se para bem compreender o novo contexto no qual se inserem os conflitos entre empregados e empregadores.
Isso, contudo, não basta. É preciso também pensar em métodos alternativos de resolução de conflitos, mais maleáveis às transformações do mercado de trabalho e aderentes às necessidades do mundo contemporâneo.
Para além da conciliação e mediação, que se caracterizam por serem meios autocompositivos de solução de conflitos — o que significa dizer que facilitam a solução mas não a impõem às partes —, surge a arbitragem, que mais se assemelha à solução judicial na medida em que constitui meio heterocompositivo de solução de conflitos. Embora ente privado e via de regra escolhido livremente pelas partes, o árbitro ou o tribunal arbitral proferem decisão final e vinculante para as partes tal qual a decisão judicial.
Em matéria de conflitos trabalhistas coletivos, pode-se dizer que a arbitragem já faz parte da tradição ibero-americana. Na Espanha, ela encontra-se prevista no Real Decreto-Ley 17/1977, tanto para a hipótese de greve quanto para a negociação de acordos coletivos. Em Portugal, o Novo Código do Trabalho (Lei 7/2009 de 12/02/2009) prevê em seu artigo 529 a arbitragem em conflitos coletivos que não resultem da celebração ou revisão de convenção coletiva. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 expressamente previu a arbitragem para conflitos trabalhistas coletivos (artigo 114, § 2º), como o faz também a Lei de Greve (Lei 7.783/1989).
O mesmo não se pode dizer do uso da arbitragem para a solução de litígios trabalhistas individuais. Ainda que sua possibilidade teórica seja objeto de intenso debate, seu uso é escasso nos países citados.
Na Espanha, por exemplo o Tribunal Superior de Justiça decidiu, em 2009,[1]não ser possível a submissão de conflitos trabalhistas individuais à arbitragem. A uma, em razão da indisponibilidade de direitos trabalhistas e das normas que lhes dão sustentação. A duas, pela falta de expressa previsão legal.
O Brasil, recentemente, reformou sua legislação trabalhista para admitir o uso da arbitragem em conflitos individuais, exigindo, porém, a presença de dois requisitos cumulativos: (i) que a remuneração do empregado seja superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social — o que resulta, hoje, em aproximadamente R$ 11 mil — e (ii) que a arbitragem seja pactuada por iniciativa do empregado ou mediante sua concordância expressa.
Seria a adoção da arbitragem um caminho adequado para a solução de conflitos trabalhistas individuais? E, caso afirmativo, fazem sentido as restrições impostas pela lei brasileira?
Nos Estados Unidos, onde a arbitragem trabalhista se desenvolveu enormemente no último século, é possível — guardadas as diferenças culturais — buscar informações tanto sobre os aspectos positivos quanto negativos em sua adoção.
Há, por um lado, dados seguros demonstrando que a arbitragem trabalhista aumenta o acesso à justiça e tende a melhorar o resultado da solução do conflito para os empregados. Em 2005, o tempo médio de resolução de conflitos trabalhistas na American Arbitration Association (AAA) foi de pouco mais de um ano, menos da metade do tempo médio para a resolução de conflitos trabalhistas no Judiciário americano. Outro estudo aponta que casos envolvendo discriminação no ambiente do trabalho apresentaram índice de 14,9% de êxito no Judiciário, muito inferior ao índice de 63% obtido na arbitragem em casos similares.[2]
Por outro lado, em estudo publicado em 2015,[3] professores das Universidades de Cornell e Penn State analisaram 2802 sentenças arbitrais prolatadas ao longo de 11 anos em casos trabalhistas administrados pela AAA, concluindo, primeiramente, que empregadores com maior quantidade de arbitragens tendem a ter maior sucesso do que empregadores que apenas ocasionalmente se envolvem em litígios arbitrais.
Este dado não diz tanto sobre a arbitragem trabalhista. A experiência acumulada pelo litigante impacta também os índices de sucesso em processos judiciais, como já havia apontado estudo pioneiro publicado na década de 70.[4] O estudo, contudo, vai além ao apontar que o índice de sucesso do empregador é ainda maior quando o mesmo árbitro atua em seus conflitos. É o que os pesquisadores chamaram de employer-arbitrator pair effect. Ao enfrentar um empregador que já teve quatro interações com o mesmo árbitro, as chances de sucesso do empregado caem 14,9%. Ao enfrentar um empregador com 25 interações com o mesmo árbitro, as chances caem 75%.
Isso não quer dizer que haja favorecimento indevido do empregador pelo árbitro, apesar de o árbitro poder estar inconscientemente respondendo a incentivos econômicos para continuar sendo indicado. Há, contudo, outras possíveis explicações para o resultado, como a experiência acumulada do empregador com o árbitro, que permite ao primeiro estruturar seus argumentos de modo individualizado e mais efetivo. De todo modo, a constatação joga luz sobre questão que merece, no mínimo, uma profunda reflexão.
Não tenho dúvidas de que a utilização da arbitragem no campo do direito do trabalho e, mais especificamente, dos conflitos trabalhistas individuais, pode contribuir para uma melhor distribuição de justiça. Celeridade, especialidade, busca de verdade real e desideologização da justiça são apenas alguns de tantos benefícios que o uso da arbitragem pode trazer.
Contudo, entendo que a arbitragem trabalhista para conflitos individuais deva observar quatro características fundamentais para que se desenvolva de maneira segura e profícua em países que recentemente a adotaram ou que venham a adotá-la no futuro.
A primeira delas é a exigência de que os procedimentos arbitrais sejam necessariamente administrados por instituições. Em outras palavras, deve-se proibir a chamada arbitragem ad hoc, que vem a ser aquela em que as partes escolhem o árbitro ou o tribunal arbitral sem a intermediação de câmaras arbitrais ou instituições similares, podendo inclusive desenhar as regras aplicáveis ao procedimento sem nenhuma vinculação a um regulamento preexistente.
Se em conflitos comerciais a arbitragem ad hoc pode, em determinadas situações, ser um bom instrumento de flexibilização procedimental, em conflitos individuais trabalhistas o natural desequilíbrio entre as partes pode facilmente contaminar a formação do tribunal arbitral e a definição das regras do procedimento. Quando me refiro a um desequilíbrio não estou afirmando que necessariamente há hipossuficiência do empregado a ponto de comprometer sua opção pela arbitragem. É inegável, no entanto, a tendência de que o empregador submeta-se a muito mais procedimentos arbitrais do que o empregado, estando, portanto, muito mais familiarizado com o processo de escolha de árbitros e de regras aplicáveis à arbitragem. Instituições arbitrais poderão, inclusive, supervisionar a escolha de árbitros de modo a evitar que o mesmo profissional seja reiteradamente indicado pela mesma parte, elemento potencializador de conflito de interesses.
A segunda característica que considero fundamental ao bom desenvolvimento da arbitragem trabalhista é a completa desvinculação das instituições arbitrais a órgãos de classe, sejam eles patronais ou de empregados. Centros ou câmaras arbitrais, por definição, devem ser imparciais e desinteressados nos conflitos. Para tanto não basta que essas instituições sejam compostas de quotas equivalentes de “representantes” de empregados ou empregadores. Essa composição, por si só — um fantasma das famigeradas juntas de conciliação e julgamento —, já seria fonte de disputas, algo incompatível com entidades cuja precípua função é resolver disputas de terceiros. Instituições arbitrais profissionais e altamente técnicas são as únicas capazes de permitir o desenvolvimento seguro da arbitragem trabalhista.
A terceira característica diz com a publicidade do procedimento arbitral. Via de regra, a arbitragem comercial desenvolve-se sob o manto da confidencialidade. Quando não prevista em lei ou no regulamento arbitral, a confidencialidade é convencionada pelas partes. Trata-se de uma importante qualidade da arbitragem comercial, que dá às partes tranquilidade para resolver suas disputas de maneira discreta, sem impactar sua imagem no mercado e sem correr o risco de revelar segredos industriais ou estratégias comerciais.
No entanto, se de um lado a confidencialidade serve ao interesse das partes que buscam resolver seus conflitos com discrição, de outro ela não permite uma análise qualitativa do uso da arbitragem tampouco da atividade dos árbitros. Para uma arbitragem que se estende para um campo até então inexplorado como o dos conflitos trabalhistas individuais, o remédio da confidencialidade traz consigo efeitos colaterais bastante nocivos. A uma, porque não permite uma avaliação completa do funcionamento da arbitragem trabalhista e das necessárias adaptações que devem ser feitas para seu bom desenvolvimento. A duas, porque a confidencialidade acabará alimentando a neofobia, desconfiança que sempre acompanha a adoção de novos institutos jurídicos.
A publicidade da arbitragem traz consigo o (bom) risco reputacional dos árbitros e das instituições arbitrais, reforçando assim seu compromisso com a solução técnica e efetiva dos conflitos que lhes são submetidos.
Por fim, entendo que a arbitragem trabalhista deverá necessariamente ser de direito. A arbitragem de direito difere-se da arbitragem por equidade, quem vem a ser aquela pela qual o árbitro pode decidir com base no seu senso de justiça, inclusive à margem ou contrariamente à lei, se necessário. A arbitragem por equidade geralmente é admitida quando as partes assim o convencionarem.[5]
O problema da arbitragem por equidade em conflitos trabalhistas individuais decorre da circunstância de que boa parte das normas de Direito do Trabalho são de ordem pública e não podem ser afastadas pela vontade das partes, dado seu caráter tutelar e norteador das relações trabalhistas.[6]
Tem o árbitro trabalhista, portanto, o dever de aplicar as fontes formais de direito, sejam elas legislativas ou mesmo precedentes quando o ordenamento jurídico reconhecer-lhes efeito vinculante.[7] Isso significa que, ao escolher a arbitragem trabalhista, as partes não estarão escolhendo um direto alternativo, mas sim um método alternativo de resolução de conflitos.
Permito-me encerrar voltando minha atenção para a recente reforma na legislação brasileira, que franqueia a arbitragem apenas para empregados com salários superiores a um determinado valor, com base na suposição de que empregados com salários inferiores não seriam completamente capazes para contratar livremente a arbitragem.
Penso ser, no mínimo, prematura a adoção de cláusula de barreira instituída pela reforma trabalhista brasileira. Ao limitar o uso da arbitragem àqueles empregados com altos salários, o legislador priva de sua utilização justamente aqueles mais necessitados de uma justiça rápida e especializada.
Se a preocupação é com a capacidade real de consentimento do empregado com a arbitragem — na medida em que, uma vez inserida cláusula arbitral no contrato, o trabalhador não poderia levar seu pleito ao Judiciário —, teria sido mais feliz o legislador se estabelecesse a facultatividade da arbitragem especificamente para os trabalhadores que não atingissem a cláusula de barreira e ainda assim desejassem contratá-la. Com isso, o trabalhador poderia escolher entre a arbitragem e a justiça estatal sempre que houvesse cláusula arbitral em seu contrato de trabalho, e somente se submeteria à arbitragem proposta pelo empregador se assim o desejasse, cumprindo às instituições arbitrais e aos próprios advogados dos empregados orientá-los de seu direito de optar pelo mais adequado meio de resolução de conflitos. Para os empregados que ultrapassassem a cláusula de barreira (“altos salários”), a arbitragem, uma vez contratada, continuaria sendo obrigatória e vinculante.
[1] Órgano: Tribunal Superior de Justicia. Sala de lo Social Sede: Albacete Sección: 2 Fecha: 22/07/2009 Nº de Recurso: 11/2009 Nº de Resolución: 1282/2009 Procedimiento: RECURSO SUPLICACION Ponente: JOSE MONTIEL GONZALEZ Tipo de Resolución: Sentencia.
[2] PADIS, George. Arbitration Under Siege: Reforming Consumer and Employment Arbitration and Class Actions. Texas Law Review; Austin, Vol. 91, Issue 3 (2013): 665-710.
[3] COLVIN, Alexander J. S. e GOUGH, Mark D. ILR Review, 68 (5), Outubro 2015, p. 1019-1042.
[4] GALANTER, Marc. Why the “haves” come out ahead: speculations on the limits of legal change. Law & Society Review 9:95-160, 1974.
[5] O Brasil adota em sua lei de arbitragem (Lei 9.307/96 – LArb, artigo 11) a orientação da Lei Modelo de Arbitragem da UNCITRAL, segundo a qual o tribunal somente poderá decidir por equidade se expressamente autorizado pelas partes (artigo 28-3). Nisso se alinha com a orientação da ampla maioria das legislações nacionais e das regras institucionais.
[6] GOTTSCHALK, Egon Felix. Norma pública e privada no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995.
[7] https://www.conjur.com.br/2017-out-03/guilherme-amaral-vinculacao-arbitros-aos-precedentes-judiciais
Por Guilherme Rizzo Amaral, doutor em Direito pela UFRGS, mestre em Direito pela PUCRS. Autor de Comentários às Alterações do Novo CPC (Ed. Revista dos Tribunais, 2016, 2ª ed.) e sócio de Souto, Correa, Cesa, Lummertz & Amaral Advogados. Visiting Scholar na Queen Mary University of London – Centre for Commercial Law Studies.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 23 de janeiro de 2018, 7h35
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