por Marco Antônio Ferreira Pascoali e Murillo Preve Cardoso de Oliveira

 

  1. O que são os Dispute Boards?

Nos últimos anos um método de resolução de conflitos extrajudiciais vem ganhando espaço no mundo do Direito: tratam-se dos Dispute Boards, também conhecidos como Comitê de Resolução de Disputas (CRD). Embora o aumento na popularidade do instituto seja recente, o primeiro registro de utilização dos Dispute Boards para resolução de conflitos remonta à década de 60, durante a construção da Boundary Dam, na cidade de Washington, nos Estados Unidos. Nessa ocasião, as partes celebraram um Joint Consulting Board, que ficaria ativo durante toda a relação contratual para a emissão de opiniões não vinculantes sobre os conflitos que eventualmente surgissem ao longo da construção[1].

Em breve síntese, os Dispute Boards podem ser conceituados como um mecanismo de solução de controvérsias que consiste na formação de um comitê de especialistas em matérias técnicas e diversas que, juntos,  vão acompanhar o desenvolvimento de um contrato  (geralmente de longa duração). Esse comitê acompanha a execução contratual desde o seu início, permitindo que seus membros compreendam todas as etapas de execução do objeto e, por consequência, possam atuar da melhor forma possível tanto na prevenção, quanto na resolução de possíveis conflitos que venham a surgir. Nessa mesma linha, apresenta o  autor Arnoldo Wald que instituto dos Dispute Boards tratam-se de:

 

[…] painéis, comitês ou conselhos, para a solução de litígios cujos membros são nomeados por ocasião da celebração do contrato e que acompanham a sua execução até o fim, podendo, conforme o caso, fazer recomendações (no caso dos Dispute Review Boards – DRB) ou tomar decisões (Dispute Adjudication Boards – DAB) ou até tendo ambas as funções (Combined Dispute Boards – CDB), conforme o caso, e dependendo dos poderes que lhes foram outorgados pelas partes.[2]

 

Inclusive, um dos grandes diferenciais dos Dispute Boards em relação aos demais meios de resolução de conflitos extrajudiciais, é o momento em que o comitê é formado. Isso porque, e conforme já adiantando, geralmente a indicação de especialistas e a consequente formação do comitê já ocorre no início da relação contratual, ou seja, antes mesmo que alguma desavença na relação entre as partes aconteça. Por essa razão, quando for chamado a se manifestar, o comitê tanto deve levar em conta o seu conhecimento técnico, como as informações que adquiriu ao longo de todo o tempo em que acompanhou a formação e a execução do contrato. 

 

  1. A utilização dos Dispute Boards nos Contratos Públicos e Privados

 

A utilização dos Dispute Boards como método alternativo de resolução de conflitos, em regra, e conforme já adiantado, está vinculada a contratos de maior complexidade e que tenham considerável prolongação no tempo, sejam estes de natureza pública ou privada. Naturalmente, a utilização dos Dispute Boards no âmbito público conterá requisitos especiais que deverão ser observados pelas partes contratantes, em especial pelo poder público. Assim, é importante que se faça algumas considerações acerca do instituto tanto em âmbito privado, quanto público.

Quanto às possibilidades de utilização dos Dispute Boards em contratos de natureza privada, podem ser mencionados como exemplos as relações oriundas de contratos de franquia; acordos de acionistas; acordo de quotistas; contratos relacionados à propriedade intelectual; e contratos do setor da construção civil. Em maior ou menor medida, todos estes negócios jurídicos possuem uma relação que se prolongará por um considerável período.

Além disso, as partes envolvidas, de comum acordo, podem estabelecer qual será a modalidade de Dispute Boards utilizada, bem como especificar todas as regras atinentes aos procedimentos relativos ao funcionamento do Comitê, ou, se preferirem, poderão optar pela utilização de Regulamento de uma Câmara especializada que já preveja a utilização dos Dispute Boards.

Por sua vez, quanto aos contratos de natureza pública, já existe no ordenamento jurídico algumas previsões em âmbito municipal acerca da possibilidade das partes se vincularem a um Comitê de Resolução de Disputas ao longo da vigência contratual, especialmente nos casos envolvendo parcerias público-privadas.

Em observância ao princípio da legalidade, a previsão dos Dispute Boards nos contratos vinculados à administração pública devem constar no edital e no anexo referente à minuta do contrato que será firmado. No contrato administrativo, deverá estar prevista a modalidade de Dispute Boards que será utilizada e as regras que irão reger o procedimento, podendo já haver a indicação de Regulamento de Câmara especializada. Por certo, nos locais onde há legislação municipal e/ou estadual vigente acerca da utilização de Dispute Boards, as regras específicas também deverão ser rigorosamente observadas por ambas as partes. 

Em acréscimo, vale mencionar que no caso dos contratos com a administração pública que tenham como objeto a construção de obras públicas, uma das principais vantagens dos Comitês de Resolução de Disputas é evitar que os trabalhos sejam paralisados ou até inviabilizados em razão de disputas técnicas. Além de diminuir os custos inerentes aos litígios envolvendo o concessionário e a administração, evita-se o atraso na execução do contrato[3].

Por fim, e englobando tanto os casos envolvendo contratos públicos, quanto contratos privados, destaca-se que a adoção dos Dispute Boards vêm-se mostrando bastante efetiva e economicamente viável, sobretudo quando se considera que as decisões proferidas pelos Comitês de Resolução de Conflitos têm resolvido em torno de 97% das divergências surgidas ao longo da relação contratual, evitando a propositura de medidas perante o judiciário ou, até mesmo, a instituição de procedimento arbitral[4]

 

  1. Modalidades e momento de formação dos Dispute Boards

 

O instituto dos Dispute Boards possui diferentes modalidades e características quanto ao momento de sua formação.  Quanto a este, momento de formação, pode-se dizer que há duas alternativas possíveis.

A primeira é o “Dispute Board permanente”. Nesta hipótese o Comitê é formado no momento da pactuação do negócio jurídico e permanece em funcionamento ao longo de toda a relação contratual, ainda que não surjam controvérsias entre as partes. A segunda alternativa é o “Dispute Board ad hoc”, que seria o caso em que o Comitê é formado somente se surgirem desavenças contratuais. O “Dispute Board ad hoc” permanecerá vigente até a prolação da decisão e a finalização dos demais procedimentos a ela aplicáveis.

Já no que se refere às modalidades dos Dispute Boards, três podem ser mencionadas, sendo que a diferença marcante entre elas vai estar intimamente ligada ao teor das suas decisões, isso é, se vão ser vinculantes,  ou não. 

A primeira modalidade é o Dispute Review Boards (DRB’s), pela qual os membros do Comitê emitem recomendações às partes. Vale ressaltar que, se as partes não apresentarem objeção à recomendação apresentada pelo Comitê, esta passará a ter efeito imediatamente vinculante às partes, sendo que o seu descumprimento poderá acarretar em penalidades contratuais e legais. Os artigos 2.2, 2.3 e 2.5 do “Regulamento do CAM-CCBC sobre o Comitê de Prevenção e Soluções de Disputas” podem ser utilizados como interessante exemplo prático acerca dos Dispute Review Board, pois são expressos ao dispor que a ausência de impugnação torna a recomendação do Comitê imediatamente vinculante às partes contratantes. O item 2.4 do mesmo Regulamento ainda dispõe que a parte que apresentar “rejeição” à recomendação deverá iniciar procedimento arbitral ou judicial no prazo máximo de 30 dias contados da submissão da notificação de rejeição, caso contrário, a recomendação se tornará vinculante e de cumprimento imediato.

A segunda modalidade é o Dispute Adjudication Board (DAB’s), pela qual os membros do Comitê emitem decisões de adoção obrigatória e imediata às partes. Neste caso, o seu descumprimento acarretará os efeitos legais e contratuais inerentes. A decisão do Comitê permanecerá obrigatória e com efeito vinculante às partes, salvo no caso de revisão desta por meio de submissão da controvérsia à arbitragem ou ao poder judiciário.

Por fim, a terceira modalidade é o Combined Dispute Boards (CDB’s), que são os Comitês que combinam as duas alternativas apresentadas anteriormente, emitindo recomendações e decisões de acordo com a situação que lhes é submetida pelas partes.

Feita essa breve explicação sobre as modalidades e o momento da formação dos Dispute Boards, também é interessante que se analise a postura do poder judiciário quando confrontado com questões relativas à necessidade ou não de revisão de uma decisão proferida pelos Comitês.

Em julgado de julho de 2018, ocorrido no Agravo de Instrumento n.º 2096127-39.2018.8.26.0000, a 10 ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo enfrentou interessante impasse envolvendo decisão proferida por Comitê de Resolução de Disputas.

No caso, a “Companhia do Metropolitano de São Paulo – Metrô” propôs ação judicial em face do “Consórcio TC – Linha 4 Amarela”, com o objetivo de revisar decisão proferida pelo Dispute Board constituído no contrato vigente entre as partes. O juízo de primeiro grau, em sede liminar, deferiu pedido de tutela de urgência e suspendeu os efeitos da decisão proferida pelo Comitê.

Por essa razão, a requerida interpôs agravo de instrumento em face da decisão interlocutória, tendo como um dos seus principais fundamentos a incompatibilidade inerente ao deferimento de decisões liminares pelo poder judiciário para a suspensão dos efeitos de decisões dos Dispute Boards. Basicamente, a lógica era a seguinte: se o Comitê já é criado para possibilitar que a obra não seja paralisada e que as decisões tenham eficácia e aplicabilidade imediata, não faria sentido o deferimento de medidas liminares.

No acórdão, o Desembargador Relator Torres de Carvalho, dando provimento ao recurso, corretamente ponderou ser plenamente possível o deferimento de tutelas provisórias de urgência quando da análise das decisões proferidas pelos Dispute Boards, mas também consignou que “[…] a interferência judicial deve dar-se com moderação e em casos que fujam à normalidade, para que a resolução amigável não se torne uma fase sem sentido ou eficácia ou que a vinda a juízo não represente mais que inconformismo com uma decisão fundamentada e, ao seu modo, correta. O edital e o contrato devem ser respeitados, salvo específico motivo aqui não demonstrado”[5].

Sem dúvidas o referido julgado representa um importante passo no desenvolvimento dos Dispute Boards em território nacional, ficando consignado na fundamentação do acórdão que, no entendimento do relator, a interferência do poder judiciário deve estar limitada aos casos que fujam da normalidade, conferindo assim maior autoridade e segurança jurídica às decisões proferidas pelos Comitês. 

 

  1. Outras considerações

 

Por fim, ainda se faz importante destacar que, como bem se sabe, no Brasil é bastante forte e enraizada a cultura litigiosa. Embora ao longo dos anos tenha crescido o prestígio dos métodos de resolução de conflitos extrajudiciais em âmbito nacional, eles ainda são tímidos quando comparados a outros países. Sendo assim, o instituto dos Dispute Boards ainda não se encontra totalmente adaptado no ordenamento jurídico brasileiro, embora seja inegável o seu desenvolvimento nos últimos tempos.

Ainda que não se tenha, por exemplo, uma previsão legislativa federal para o instituto, já existem alguns projetos de leis sobre o assunto. A título de ilustração, tem-se o projeto de lei nº 9888/2018, que dispõe sobre os Dispute Boards em contratos administrativos. Um outro exemplo seria a previsão do artigo 149 do projeto de lei nº 1292/95, que está em tramitação no congresso nacional e visa substituir a lei nº 8666/93, ao citar os Dispute Boards como meio alternativo de resolução e prevenção de controvérsias nos contratos regidos pela nova lei de licitações.

Em âmbito municipal, por sua vez, já se vislumbra, embora de maneira encalistrada, algumas previsões legais versando sobre o instituto. Um exemplo seria a lei nº 16.873/2018, da cidade de São Paulo, que determina a utilização de Comitês de Prevenção e Solução de Disputas para “dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis em contratos continuados da Administração Direta e Indireta do Município de São Paulo.”

Inegável, contudo, que dentro do Direito Brasileiro, o ambiente em que o instituto dos Dispute Boards mais se encontra desenvolvido e vem sendo constantemente previsto é nos regulamentos das Câmaras de Mediação e Arbitragem. Conforme inclusive exemplificado ao longo do texto, já são inúmeras as câmaras nacionais que possuem um regulamento próprio para o instituto.

O que se percebe é que, ainda que em passos suaves, o instituto dos Dispute Boards vem ganhando espaço no ordenamento jurídico brasileiro, sendo papel dos operadores do direito, em especial aqueles que possuem experiência teórica e prática com o tema, empenharem-se, com afinco, para possibilitar que o mecanismo seja bem compreendido pelo judiciário e órgãos de controle[6]. 

 

Referências Bibliográficas

 

ANDRADE, Juliana Loss de. Os potenciais impactos da adoção dos comitês de resolução de disputas nos contratos da administração pública. Revista Controle Doutrina e Artigos. Fortaleza. Vol. 16. n.º 2. jul/dez, 2018. p. 32.

 

BUENO, Júlio; FIGUEIREDO, Augusto. Os dispute boards em contratos de construção e grandes projetos de infraestrutura. FGV projetos. Ano 12, n.º 30, abr-mai 2017. p. 88. Disponível em <https://fgvprojetos.fgv.br/sites/fgvprojetos.fgv.br/files/cadernosfgvprojetos_30_solucaodeconflitos_0.pdf>. Acesso em 18.08.2020.

 

SALLA, Ricardo Medina. Dispute boards: uma realidade a ser fortalecida. Artigo publicado no Jota em 25.12.2019. Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/dispute-boards-uma-realidade-a-ser-fortalecida-25122019>. Acessado em 18.08.2020.

 

TJSP. Agravo de Instrumento n.º 2096127-39.2018.8.26.0000. 10 ª Câmara de Direito Público. Des. Rel. Torres de Carvalho. Julgado em 30.07.2018.

 

WALD, Arnoldo. Dispute Resolution Boards: evolução recente. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 8, n. 30, p. 139-151, jul./set. 2011.

  

[1] BUENO, Júlio; FIGUEIREDO, Augusto. Os dispute boards em contratos de construção e grandes projetos de infraestrutura. FGV projetos. Ano 12, n.º 30, abr-mai 2017. p. 88. Disponível em <https://fgvprojetos.fgv.br/sites/fgvprojetos.fgv.br/files/cadernosfgvprojetos_30_solucaodeconflitos_0.pdf>. Acesso em 18.08.2020.

[2] WALD, Arnoldo. Dispute Resolution Boards: evolução recente. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 8, n. 30, p. 139-151, jul./set. 2011.

[3] ANDRADE, Juliana Loss de. Os potenciais impactos da adoção dos comitês de resolução de disputas nos contratos da administração pública. Revista Controle Doutrina e Artigos. Fortaleza. Vol. 16. n.º 2. jul/dez, 2018. p. 32.

[4] Ibid, p. 92.

[5] TJSP. Agravo de Instrumento n.º 2096127-39.2018.8.26.0000. 10 ª Câmara de Direito Público. Des. Rel. Torres de Carvalho. Julgado em 30.07.2018.

[6] SALLA, Ricardo Medina. Dispute boards: uma realidade a ser fortalecida. Artigo publicado no Jota em 25.12.2019. Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/dispute-boards-uma-realidade-a-ser-fortalecida-25122019>. Acessado em 18.08.2020.

 

 

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