A Medida Provisória 752/16 estabeleceu diretrizes gerais para a prorrogação e a relicitação dos contratos de parceria firmados nos termos da Lei 13.334/16 (PPI – Programa de Parcerias de Investimentos). A MP trata da arbitragem na hipótese de relicitação, por meio de compromisso arbitral em aditivo específico (artigo 15, inc. III), e nos contratos de parceria em geral, em que a cláusula compromissória pode existir de modo originário ou ser incluída em aditivo (artigo 25). [1]
O artigo 25 estabelece peculiaridades da arbitragem no âmbito do PPI, inclusive quanto a custas, patrimonialidade dos direitos e credenciamento de instituições arbitrais. Diversas questões vêm sendo objeto de discussão. Algumas já foram tratadas nas Emendas 005, 023 e 078 à MP 752/16 e serão objeto de consideração no processo de conversão da MP 752/16 em lei. As emendas propostas exigem que a arbitragem seja de direito e aplique o direito brasileiro (Emenda 005), excluem do caput do artigo 25 da MP 752/16 a aparente exigência de prévio exaurimento da via administrativa (Emenda 023) e preveem a participação da AGU na arbitragem e em eventual transação (Emenda 078).
Alguns pontos positivos da MP são (i) a possibilidade de submissão de conflitos a arbitragem independentemente de cláusula compromissória inserida em contrato; (ii) a exigência legal de que a arbitragem seja institucional; (iii) amplitude da segurança jurídica para o parceiro privado, em vista da maior celeridade do processo arbitral e da expertise dos árbitros; (iv) a predeterminação quanto ao adiantamento das custas e despesas relativas ao procedimento arbitral pelo parceiro privado; e (v) a predeterminação das matérias arbitráveis no âmbito do PPI. [2]
Apesar de a permanência das regras trazidas pela MP 752/16 depender de sua conversão em lei, nada impede que seus termos sejam implementados no período em que a MP produzir efeitos, iniciado na data de sua publicação. É possível que contratos do PPI firmados durante a vigência da MP 752/16 contenham cláusula compromissória, que estas sejam incluídas por aditivos nos contratos já existentes e que sejam firmados compromissos arbitrais em aditivos específicos nos casos de relicitação.
A principal inovação da MP 752/16 é a introdução, no Brasil, de um mecanismo amplamente conhecido na experiência internacional para a proteção de investimentos. No âmbito da Convenção de Washington de 1965, da qual o Brasil não é signatário, e da arbitragem de investimento em geral, um Estado pode oferecer genericamente aos seus investidores estrangeiros a possibilidade de submeter os litígios correspondentes a arbitragem. Essa oferta unilateral que reflete o consentimento do Estado soberano [3] é geralmente formulada por meio de acordos multilaterais, acordos bilaterais [4] ou leis nacionais de proteção de investimento. [5] O investidor, por sua vez, aceita essa oferta e aperfeiçoa o consentimento necessário para a existência de uma convenção de arbitragem por meio de uma ampla variedade de manifestações, inclusive por sua conduta — como a própria solicitação de instauração da arbitragem.[6]
Como esclarece Jeswald Salacuse, as disposições em tratados de investimento (e o mesmo pode ser dito sobre leis de proteção de investimento) não podem ser consideradas por si sós como uma convenção de arbitragem, mas como uma oferta unilateral e irrevogável de arbitragem, passível de aceitação também unilateral pela contraparte: “An investor may accept that offer in different ways, including the submission of a request for arbitration or some other mechanism offered in the treaty. The offer includes the various terms and conditions contained in the applicable investment treaty.
O artigo 25 da MP 752/16 estabeleceu sistema similar a este no direito brasileiro, aplicável indistintamente a partes brasileiras ou estrangeiras, desde que no âmbito material coberto pela própria MP 752/16. A leitura do caput e dos §§ 1º a 3º do artigo 25 leva desde logo a essa conclusão. O caput prevê que determinadas “controvérsias surgidas em decorrência dos contratos de parceria nos setores de que trata esta Medida Provisória (…) podem ser submetidas à arbitragem ou a outros mecanismos de solução de controvérsias”. O âmbito material da MP 752/16 corresponde a certos contratos de concessão e de PPP em que o poder concedente é a União Federal — ainda que atuando por meio de instrumentalidades suas, como autarquias federais. O dispositivo estabelece dois requisitos. Primeiro, a necessidade de decisão definitiva da autoridade competente prévia à arbitragem prevista no caput (ou seja, cabe a arbitragem após encerrada a discussão administrativa). Depois, a arbitragem deve dizer respeito a direitos patrimoniais disponíveis previstos no § 4º: a arbitrabilidade objetiva, para os fins dessa oferta unilateral, é limitada aos direitos patrimoniais disponíveis especificados no dispositivo.[7]
Preenchidas tais condições, o caput do artigo 25 deve ser compreendido como manifestação unilateral e definitiva da União Federal de seu consentimento em submeter o litígio em questão a arbitragem. Essa manifestação, por parte da União Federal, é completa e definitiva, condicionada apenas aos dois requisitos estabelecidos no próprio dispositivo. O que falta para o aperfeiçoamento da convenção de arbitragem é a manifestação da contraparte — concessionário ou parceiro privado, conforme o caso. A situação das outras formas de solução extrajudicial também referidas genericamente no dispositivo é distinta, em face da variedade de suas possíveis manifestações. Mas a sujeição à arbitragem por parte da União Federal é já plenamente eleita e consolidada pela redação do artigo 25. Seu aperfeiçoamento como convenção de arbitragem depende apenas da manifestação de consentimento do concessionário ou parceiro privado.
O consentimento da contraparte privada pode ser manifestado por meio de um aditivo ao contrato que não contenha cláusula arbitral (§ 1º do artigo 25) ou mesmo por outras vias, como a própria solicitação de instauração da arbitragem ou uma declaração unilateral. Havendo a concordância da parte privada com a submissão do litígio à arbitragem, o particular passa a integrar uma convenção de arbitragem ou a ter direito ao seu aperfeiçoamento, conforme o caso. Esse direito pode conduzir diretamente à instauração da arbitragem, inclusive por meio do sistema estabelecido pelos artigos 6º e 7º da Lei 9.307/96 para a instauração da arbitragem diante de controvérsia já existente. Ou pode, se esta for a preferência do particular, assegurar-lhe o direito de exigir a celebração do aditivo referido no artigo 25, § 1º, da MP 752/16 para a inclusão de cláusula arbitral no contrato para a solução de controvérsias futuras. Neste caso, os eventuais impasses existentes na definição das condições do aditivo — por exemplo, quanto à escolha da instituição arbitral — deverão ser resolvidos pelo Judiciário.
Essa compreensão do caput e do § 1º do artigo 25 é confirmada por sua própria redação. Nada no caput induz a conclusão de que a autorização para solução da controvérsia por arbitragem é condicionada ao aditivo previsto no § 1º. Teria sido simples ao legislador estabelecer esta condição, mas não o fez. Por outro lado, embora os dispositivos também nada digam expressamente acerca da necessidade de consentimento do particular interessado, este consentimento é conatural à convenção de arbitragem. Em tese, poderia ser — em casos excepcionais — dispensado por uma previsão expressa e clara de arbitragem obrigatória em setores específicos (o que existe em diversos países e, de certo modo, no Brasil no setor de comercialização de energia elétrica). Mas isso dependeria de previsão explícita e não se extrai nem de modo indireto da redação do artigo 25. A compreensão também é confirmada pela redação dos §§ 2º e 3º do dispositivo em questão. Ambos estabelecem condições da arbitragem (antecipação das despesas, realização no Brasil e em língua portuguesa) de modo categórico, não condicionado ao aperfeiçoamento da convenção de arbitragem.
Porém, a confirmação decisiva desse entendimento deriva da interpretação sistemática do artigo 25 e seu § 1º. A mera previsão de que os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis podem ser objeto de uma convenção de arbitragem entre a União Federal e seus parceiros privados ou concessionários já consta expressamente da Lei 11.079/04 (Lei de PPPs) e da Lei 8.987/95 (Lei de Concessões) desde, respectivamente, 2004 e 2005. Foi consagrada também, inclusive antes disso, em diversas leis setoriais aplicáveis a tais contratados. E foi expressamente reiterada pela alteração da Lei 9.307/96 introduzida pela Lei 13.129/15. Não se pode supor que o legislador (Poder Executivo), por meio da MP 752/16, tenha apenas repetido aquilo que historicamente já havia sido construído e consagrado pelos diversos diplomas que culminaram na reforma legislativa de 2015.
Ademais, esse entendimento dá sentido à previsão do caput de que a submissão à arbitragem é possível “após decisão definitiva da autoridade competente”. Essa condição tem gerado certa perplexidade. Discute-se se implicaria uma restrição de acesso à jurisdição (é este o enfoque da emenda 23 à MP 752/16) ou qual a conduta impedida pela inexistência de tal decisão: a celebração de uma convenção de arbitragem (compromisso), a própria celebração do aditivo previsto no § 1º ou apenas a instauração efetiva da arbitragem. A interpretação do dispositivo é clara e simples quando se compreende que esta é a condição para a oferta unilateral de arbitragem pela União Federal. O dispositivo estabelece que, havendo já uma decisão administrativa, a questão pode ser levada à arbitragem nos termos do artigo 25; não existindo essa decisão, o regime excepcional do artigo 25 não se aplica. Evidentemente, isso não exclui o regime geral, consagrado inclusive no artigo 1º da Lei 9.307/96.
Ou seja, dentro do âmbito material da MP 752/16 (PPI) e desde que tenha havido decisão definitiva da autoridade competente, a oferta unilateral de arbitragem do artigo 25, caput, torna-se eficaz e pode ser objeto de aceitação (também unilateral) pelo particular interessado. Fora dessas condições, aplica-se o regime geral. Isso explica por que pode existir compromisso arbitral ou cláusula compromissória mesmo fora das condições do caput, aplicando-se o regime geral. Também explica por que é válida e não implica ofensa ao direito de acesso à jurisdição a condição (prévia decisão administrativa) prevista no caput. Trata-se da mínima garantia para a União Federal de que sua oferta unilateral de arbitragem pressuporá a prévia existência de uma decisão administrativa.
A noção de decisão definitiva da autoridade competente também exige pequeno aclaramento. O que se exige, para a aplicação do caput, é apenas que exista alguma decisão administrativa. A matéria não pode jamais ter sido objeto de decisão administrativa e ser inovadoramente resolvida de modo definitivo pelo juízo arbitral. Porém, o seu caráter definitivo não exige que tenha sido proferida pela autoridade mais elevada nem que tenham sido exauridos todos os recursos possíveis. Basta que o particular interessado renuncie à discussão administrativa e, com isso, dê caráter definitivo (na via administrativa) à decisão impugnada. Por outro lado, os prazos estabelecidos na legislação federal de processo administrativo (especialmente na Lei 9.784/99) se aplicam. Uma vez exauridos os prazos para decisão, o silêncio da Administração terá preenchido o requisito da prévia decisão administrativa para o efeito de se tornar eficaz a oferta unilateral de arbitragem contida no caput. Isso não impede que, havendo interesse do particular em provocar uma efetiva decisão administrativa antes de aceitar a oferta unilateral de arbitragem contida no caput, este promova medida judicial destinada a obter tal decisão efetiva (por exemplo, um mandado de segurança contra a omissão administrativa). Essa conduta não implica qualquer renúncia ao direito de oportuna aceitação da oferta de arbitragem, uma vez que diz respeito ao momento anterior (“decisão definitiva da autoridade competente”), estabelecido como condição de eficácia da oferta unilateral de arbitragem pela União Federal.
Pelo exposto, conclui-se que o artigo 25 da MP 752/16 traz uma profunda e importante inovação no sistema jurídico brasileiro relativo à arbitragem envolvendo a Administração Pública. Por meio do dispositivo, a União Federal manifesta de modo unilateral seu consentimento para submissão a arbitragem das controvérsias relativas a contratos abrangidos pelo PPI em que tenha já havido decisão definitiva pela autoridade administrativa competente. A configuração dessa condição pode ser precipitada pela renúncia, pelo particular interessado, à impugnação administrativa de decisão já existente, ainda que em tese passível dessa impugnação. Também pode ser configurada pelos efeitos do silêncio administrativo diante do descumprimento de prazos normativos para decisão, como os da Lei 9.784. Não havendo definição prévia das condições para a realização da arbitragem ofertada unilateralmente pelo caput do artigo 25, aplica-se o regime dos artigos 6º e 7º da Lei 9.307/96, cabendo ao Poder Judiciário suprir os elementos necessários para a instauração da arbitragem que não tenham sido definidos pelas partes.
1 V. artigo de Bruno Renzetti.
2 V. apresentação de Luciana Levy.
3 CIURTIN, Horia. “Paradoxes of (Sovereign) Consent: on the uses and abuses of a noition in international investment Law” in BALTAG, Crina. ICSID Convention After 50 Years: unsettled issues. Kluwer Law International, 2016. pp. 25-74. Veja-se, especialmente, § 2.04(B) (Instruments of Consent: (No) Privity and the Triumph of Unilateralism).
4 BORN, Gary. “Enforcing International Arbitration Agreements” in International Arbitration and Forum Selection Agreements: Drafting and Enforcing, 5th edition. Kluwer Law International, 2016. pp. 121-128.
5 MBENGUE, Makane Moïse. “Consent to Arbitration Through National Investment Legislation” in IISD Investment Treaty News, 19 July 2012. Disponível em: <https://www.iisd.org/itn/2012/07/19/consent-to-arbitration-through-national-investment-legislation/>. Acesso em: 02 mar. 2017.
6 SALACUSE, Jeswald. The Law of Investment Treaties, 2nd edition. Oxford University Press, 2015. pp. 422-423.
7 Veja-se artigo de André Rosilho.
Por Cesar Pereira, doutor e mestre em Direito do Estado (PUC/SP). FCIArb. Sócio de Justen, Pereira, Oliveira & Talamini.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 6 de março de 2017, 7h16
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